terça-feira, 28 de agosto de 2012

Chique é ser dondoca



Quem se torna famoso ou está no auge temporariamente tem maior facilidade de ser visado pelos demais. Algumas profissões facilitam o reconhecimento instantâneo, em âmbito nacional e internacional.
Alguns episódios isolados e despretensiosos fazem algumas pessoas famosas num piscar d’olhos. Como regra, são acontecimentos trágicos ou bizarros os mais suscetíveis a fabricarem estrelas momentaneamente. Poucos conseguem manter a visibilidade ganha. O então desconhecido repórter Celso Russomano filmou o mau atendimento à sua esposa num hospital particular, que teria contribuído para levá-la a óbito.  Grazi Massafera também se firmou como atriz global depois de participar de um dos Big Brother Brasil. A maioria apenas aproveita os dias de fama e desaparecem. Aquela menina que estava no Canadá.
Famosos, ou por resultado de um trabalho duradouro ou por fatos inusitados, eles passam a ser referência para muitas pessoas. São imitados nas roupas, nos anos oitentas as calças curtas de Michael Jackson viraram mania nacional; nos cortes de cabelo, caso dos neymarnias; nos gestos, e especialmente nos seus hábitos quando tornados públicos, mas acima de tudo, nas manias. Nesse patamar das manias, as que mais pegam são aquelas que passam a valorar ações negativas ou fúteis em detrimento de atitudes positivas.
Foi assim que o tricampeão mundial de futebol, Gerson, ao fazer um comercial de uma marca de cigarro disseminou a ideia de que levar vantagem desonesta seria sinônimo de inteligência, de genialidade. Daí por diante todo mal educado passou a furar a fila de banco; os menos espertos passam serviço a um amigo na fila. Vir pelas laterais e ultrapassar os demais numa escada rolante, utilizar o elevador destinado aos preferenciais ou fingir dormir para não ceder o lugar destinado aos preferenciais são condutas corriqueiras. Ah, carros pelos corredores de ônibus tomarem a frente dos outros é a cereja de bolo da incivilidade brasileira. Como essas vilanias são consideradas virtuoses de gênios, também tomou conta do inconsciente coletivo que ser famoso é sinônimo de ser dondoca. E isso se proliferou.
Todo dia na televisão passa um famoso que só sabe fritar “bem” um ovo. Primeira tolice é definir como “bem”. Toda fritura, cozimento, depende do gosto pessoal. Bem passado para uns seria o ovo mal frito para outros. Informar que o inverso também é verdadeiro não será necessário, pois até a maioria dos geniozinhos entenderá.
Pior, ainda, é a cena da simulação do ovo sendo sapecado na frente das câmeras, quando todo mundo sabe ser tudo previamente combinado. Um dos mais recentes inúteis a sapecar um ovo foi o cantor – respeito tudo que se chame de gosto - Michel Teló no programa Fantástico, da Rede Globo. Mas já vi vários outros a afirmar que sabem fazer um miojo, um café, coisas banais assim, “gerseando” a impressão de que ser famoso também significa ser incapaz para tarefas simples do dia a dia. Não existe erro em não saber, pois são sempre pessoas atarefadas. O equívoco estaria em glamourizarem suas babaquices. Todos fazem umas carinhas de dondocas finos, com um sorriso reafirmador de que não são tarefas para famosos. Até a presidenta Dilma corroborou com essa pieguice no programa da Ana Maria Braga. Ela fez uma omelete, ao menos falou corretamente “uma” omelete, o que muitos queimadores de ovos devem ter ignorado.
Por conta dessa valoração do não saber, a atriz Sônia Braga contou que num happy hour na casa de um ator americano famoso, ela esperava ser servida quando, surpresa, percebeu que deveria se servir ou não comeria nada. Estupefata ficou no final, quando descobriu que cada um teria que lavar o prato ou copo que utilizara.
Como os famosos são realmente uma referência de conduta, muitas mulheres simples, sem nenhum recurso para pagarem a uma empregada, criam suas barbies sem saber fazer nada em casa, exatamente para serem iguais aos chiques da televisão, do cinema, da arte em geral. “Essa menina não sabe fazer nada em casa”, costumam dizer com ar fingindo de falsa modéstia. Forma-se, assim, uma sociedade de ignóbios, ao invés de se formar uma sociedade de pessoas capazes de executar pelo menos as tarefas corriqueiras, que muitas vezes poderiam evitar dificuldades em determinadas circunstâncias. Isso não é importante. Ser chique é ser famoso e dondoca; e quem não consegue a fama, torna-se apenas um pobre-dondoca-chique.

Pedro Cardoso da Costa – Interlagos/SP
   Bacharel em direito

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Dignidade acima do sofrimento



Em 2000, escrevi um artigo com o título “bandido não tem classe social”. Naquela época fazia uma ilação entre o assassino Sandro do Nascimento e o senador Luiz Estevão. Sandro matou a professora Geísa Firmo Gonçalves ao vivo pela televisão numa tentativa frustrada de roubar trabalhadores em um ônibus coletivo no Rio de Janeiro. Já o senador Luiz Estevão roubou mais de 169 milhões de reais da construção do Fórum do Tribunal Regional do Trabalho, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, em parceria com o larápio Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, à época presidente daquele órgão da Justiça brasileira. Eu disse: presidente.
Mencionei que o Sandro tinha toda a trajetória de vida para ser bandido, conforme o conceito social dominante. E era isso mesmo, um bandido. Já o senador era um ilibado representante da República. Até fisicamente ambos tinham as características do que representavam, ainda segundo a visão predominante na sociedade. Eu concluía que ambos eram bandidos, mas que Luiz Estevão era mais bandido, caso existisse classificação. Com a sua roubalheira, retirava o dinheiro público da educação e da saúde que poderia ter salvado inúmeros sandros da marginalidade, ainda na visão da grande maioria.
Há poucos dias, a relação do então senador Demóstenes Torres com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e a devolução de vinte mil reais ao dono por um casal morador de rua assemelharam-se a Sandro Nascimento e Luiz Estevão.
Esse casal nem considerou a seu favor o errôneo álibi popular de que “o achado não é roubado”. Rejaniel Jesus dos Santos e sua mulher não tiveram dúvida em devolver o dinheiro. Seria uma atitude normal, não merecedora de destaque, não fossem a cultura nacional de levar vantagem em tudo e condição de moradores de rua, carentes de quaisquer bens materiais. Mas eles tinham aprendido com as mães de que não deveriam ficar com nada que não fosse seus. Citada expressamente por Rejaniel, a mãe o ensinara a ter caráter e dignidade com intensidade suficiente para que ele colocasse em prática mesmo em situação de extrema carência e após tantos anos. A dignidade deles também foi acompanhada pelos policiais. Diante de tão generalizada corrupção, seria fácil aos PMs simplesmente embolsarem o dinheiro e desmentirem os moradores de rua ou obrigarem-lhes a se calar. Fizeram o dever funcional exatamente como deveria ser a regra.
Para quem se apressar em dizer que Demóstenes Torres não é ladrão, coloco o conceito de roubo do Livro O Caçador de Pipas, ao afirmar que só existe um pecado: roubar. Os demais são variantes dele. Demóstenes roubou a confiança de milhares de pessoas que o colocaram no Senado. Além disso, ele roubou a crença das pessoas que acreditavam em suas palavras, bem como na ética que defendia tão enfaticamente.
Faltou o valor moral subjetivo que sobrou ao casal faltou a Demóstenes. Para o agora ex-senador o que interessava era mais dinheiro, sem importar a origem. Ele não tinha a fome que corroía os moradores de rua; ele não sentia o frio que contraía os músculos dos moradores de rua. Todo esse sofrimento fisiológico poderia ser aliviado com o dinheiro encontrado. Nem isso foi suficiente para suscitar alguma dúvida em Rejaniel e sua esposa. Um bom sono trazido pelo aconchego de um cobertor quente e a possibilidade de obter comida para suprir a fome nem abalaram sua consciência. Provaram que a consciência tranquila e a certeza do dever cumprido são valores maiores do que suas necessidades físicas. Mas isso só serve para quem aprendeu o que lhe foi ensinado. Não se sabe se o senador recebeu esse ensinamento em casa, mas se houve, com certeza não assimilou. Só não resta dúvida de que Rejaniel e sua esposa são verdadeiros cidadãos. E que cidadãos!
Pedro Cardoso da Costa  - Interlagos/SP
   Bacharel em direito